terça-feira, 23 de agosto de 2011

O Toque da Entropia


Olá.

O conto a seguir foi originalmente publicado no forum do Universo Nova Frequencia como parte de uma mini-série chamada Desejos Negros, onde cada autor escreveu um capítulo próprio.

A sinopse da mini-série era a seguinte: Um cara misterioso, chamado Melkart, passeia pelo mundo procurando pessoas de caráter duvidoso para realizarem um trabalho com consequências nefastas para o mundo todo. Em troca ele oferece a realização de um desejo.

Neste capítulo, ele encontra o meu personagem. O conto pode ser entendido por si mesmo, sem a necessidade de leitura dos demais. Se alguém se interessar eu posto o link da série completa aqui.

Abraço e boa leitura.



O Toque da Entropia
Por Alex Nery


- Quer saber como tudo começou? – pergunta o homem barbudo sentado na cadeira de madeira.

- Na verdade, eu já sei. Mas quero ouvir com suas palavras. – responde o visitante recostando-se em sua própria cadeira.

- Humpf... se é assim...

    “Eu me lembro do verde. Verde abundante, em todos os tons possíveis de se imaginar. Nos cercando, nos cobrindo, nos sufocando num calor insuportável. Assim era a mata quando nela adentramos. Quatro semanas de caminhada depois, estávamos exaustos. Nossas camisas empapadas de suor, nossas roupas sujas... mas nada isso importava. O que importava era seguir o comandante.
    Joaquim de Araújo era um homem forte. De cinqüenta e poucos anos, ainda liderava expedições como a nossa, com o objetivo de abrir rotas pela mata e capturar os nativos, que estavam sendo vendidos a bom preço em São Paulo. A coroa agradecia o nosso esforço... e os nossos bolsos nunca ficavam vazios. Somente o ouro poderia nos impulsionar neste inferno verde.
    Quando encontrávamos os selvagens, o verde era substituído por outra cor: o vermelho. O vermelho do sangue desses animais, que insistiam em lutar para permanecer em suas aldeias imundas, vivendo nus, sem lei nem ordem, sem nem ao menos o temor da cruz.
    E como lutavam os animais! Chegaram a matar dois dos nossos com suas lanças e feriram mais dois com suas flechas certeiras. Mas neste dia, fizemos a vontade do Senhor e conseguimos apresar trinta deles para levá-los à civilização, onde teriam a oportunidade de converter-se em cristãos e trabalhar a serviço de algum nobre, como era seu destino. Infelizmente, duas dúzias deles morreram na luta, fazendo nosso comandante lamentar o prejuízo. E as mulheres fugiram mata adentro. Nem esse divertimento pudemos ter naquele dia.
    Meu nome é Antonio Silveira. Na época eu tinha apenas dezesseis anos e era a primeira vez que participava de uma das expedições de apresamento dos selvagens. Mesmo com a minha inexperiência tive orgulho em degolar um dos animais quando o encontrei escondido atrás de uma árvore. Era um velho. Não teria valor algum no mercado.
    Após reunirmos a renda do dia e nos certificarmos de que estavam bem amarrados, nosso comandante decidiu retornar à Missão de Santa Maria, por onde passamos dois dias atrás. Lá seria um bom lugar para manter o grupo de escravos, até nossa volta à capital, uma vez que o Padre Lázaro era associado de Joaquim de Araújo.”

- Muito cristão de sua parte – ironiza o visitante.

- Naquela época, tínhamos outras idéias. Afinal, era 1590. Posso continuar?

- Deve.

- Pois bem...

    “Nem tudo ocorreu como planejava nosso capitão. Caminhamos até o anoitecer, quando resolvemos pernoitar numa clareira próxima a um riacho. Reunimos os selvagens num local e os amarramos uns aos outros, e também às arvores mais próximas. Estabelecemos a rotina de vigia e aqueles dispensados do primeiro turno se recolheram para dormir.
    Eu estava de prontidão quando aconteceu (para minha desgraça). Primeiro, um clarão e o céu se encheu de uma luz azulada. A noite tornou-se praticamente dia, empalidecendo a nossa fogueira. O estrondo que se seguiu foi aterrorizante. Muitos de nós caíram de joelhos pedindo perdão por seus pecados, acreditando tratar-se do fim do mundo. Outros embrenharam-se na mata gritando como loucos. Os selvagens, impossibilitados de fugir, gritaram assustados e diziam coisas que ninguém compreendia.
    De onde estava, pude perceber que havia fogo e fumaça num ponto não muito distante na mata. Naquela época, como já disse, eu era um jovem ignorante e sedento por aventuras e riquezas. Não hesitei. Corri para o local onde o fogo se pronunciava.
    Cheguei no local em quinze minutos. Fui o primeiro a chegar. O cenário era de desastre. Árvores caídas e queimadas como se uma mão invisível houvesse passado furiosamente por ali. Eu acreditava que Deus finalmente havia decidido queimar aquele pedaço do inferno na terra.
    Aproximei-me cautelosamente. No final do rastro de destruição havia uma cratera com cerca de vinte metros de diâmetro. Um buraco negro, de terra queimada. O calor era grande, mas suportável. Foi quando finalmente vi.
    Dentro da cratera havia uma redoma. Uma coisa que lembrava uma colher. Uma redoma com dois metros de comprimento e igual altura e uma cauda de três metros, que ia afinando a partir da redoma. Era vermelha, mas conforme o calor diminuía, sua cor se tornava azul.
    Com o cano de minha espingarda, cutuquei a redoma. Ela se desfez como água, abrindo sua parte superior.
    E dentro havia um demônio.”

- Um demônio? Que pitoresco... – zomba o visitante.
- Naquela época, era a única coisa que eu podia pensar. Hoje, eu sei que o demônio tem outras formas. Como a sua, senhor Melkart. – diz o homem barbudo com raiva.
- Demônio? Sim, sim... já fui chamado assim. Mas continue, Silveira...
- Como eu dizia...

    “O demônio era pequeno. Devia ter uns cinqüenta centímetros de altura. Sua cabeça era desproporcional ao corpo. Tinha dois orifícios na parte superior da cabeça, que deveriam ser seus olhos, e dois orifícios laterais. Não vi nariz algum e o que parecia uma boca era protuberante e se destacava na cabeça redonda. Seu corpo era esguio, braços longos e tentaculares, duas pernas curtas... Algo horrível. Ao me aproximar para observar melhor, a coisa abriu os olhos graúdos e fixou-os em mim. Meu primeiro pensamento foi atirar naquela coisa. E foi o que fiz. Engatilhei a espingarda e acertei em cheio um tiro na cabeça daquele demônio, espalhando seus miolos por toda parte.
    Com o coração palpitando eu queria sair dali o mais rápido possível, mas foi quando vi o tubo com as luzes de várias cores, bem ao lado do monstro. Eram cores maravilhosas e me atraíram como uma borboleta. Hipnotizado, toquei no tubo e da mesma forma que a redoma, ele se desfez.
    Olhei maravilhado aquelas luzes saírem flutuando do tubo. Elas giraram ao meu redor e antes que eu me desse conta, elas investiram contra mim e entraram em meu corpo, sem abrir um buraco sequer. Apenas transpassaram minha pele e eu pude senti-las percorrendo meu corpo. Imagens loucas, de lugares estranhos, mundos perdidos, sóis e luas distantes invadiram minha mente. Na época, achei que estava vendo uma paisagem do inferno.”

- Você parece ter fixação no inferno, Silveira. Ou estou enganado? – o visitante sorri.
- Céu ou inferno... tenha o nome que tiver, não acredito que exista. Não mais. – Silveira se remexe na cadeira. Em seus olhos, um ódio profundo parece flutuar.
- Ah, meu pobre amigo... Será que 432 anos de vida não lhe ensinaram nada?
- Ensinaram que eu não consigo morrer. Por mais que tente, e acredite, eu já tentei tudo o que se possa imaginar, eu continuo aqui. Aquela experiência me tornou imortal... E me amaldiçoou.
- Ah, sim. Sua condição é interessante... Um imortal que não pode tocar em ninguém.
- Maldito demônio zombeteiro...
- Não, não, Silveira. Posso ser um demônio (quem sabe?), mas estou aqui para ajudá-lo.
- Me ajudar? Como?
- Eu venho lhe observando desde muito tempo. Sei que seu encontro com forças de outro mundo lhe deu a imortalidade, mas também lhe deu o toque da morte.

    Silveira olha para as próprias mãos enfaixadas e enluvadas.

- Você não pode tocar em nenhum ser vivo sem que o mate. E isso já lhe custou muito, não? Sua família, seus amigos... – os olhos do visitante parecem duas brasas incandescentes.
- Sim, sim, SIM!!! Maldito. Sabe de tudo isso e veio me atormentar? Faz vinte anos que me recolhi nesta cabana, afastado de tudo e de todos para tentar existir em paz... Me deixe! Suma daqui!
- Dificilmente você gostaria que eu sumisse. Eu tenho poder para lhe dar seu maior desejo.
- Meu maior desejo é a morte!
- Pois posso concedê-la a você.
- Mentiroso. O demônio sempre mente...
- Esqueça suas aulas de catecismo. Já fazem pelo menos três séculos que você não se considera cristão, ou de qualquer outra religião...
- Diga o que quer ou vá embora!
- Ah, curioso agora? Pois bem. Eu posso lhe conceder a morte. Mas você deve me convencer que realmente merece meu presente.
- Como? Eu já tive que matar nesta vida... às vezes por defesa, outras por pura loucura... Tenho muitos pecados!
- Não foi o suficiente. Me agrade e a morte lhe receberá. Eu garanto.
- Você é a morte?
- Não. Mas posso lhe levar até ela.
- Então faça AGORA! EU IMPLORO!
- Faça por merecer. Além disso, outros buscam pela minha atenção e meus presentes... talvez você não seja o melhor deles. Talvez outro seja mais digno...
- O quê devo fazer?
- Use sua imaginação. Pense em algo...

    Silveira sente sua cabeça ferver. Aquele estranho homem, surgido do nada, batera em sua porta esta manhã e simplesmente sabia tudo a seu respeito. Seus instintos lhe diziam se tratar de um demônio, mas mesmo para quem viveu quatro séculos e viu muita coisa, ele não tinha certeza disso.
    Quatro séculos... o suficiente para ver todas pessoas amadas sucumbirem. O suficiente para conhecer o melhor e o pior dos homens. O suficiente para se cansar da maldição de não poder tocar em nenhum ser vivo.
    Súbito, a decisão está tomada. Silveira levanta-se e diz:

- Me espere aqui. Quando eu voltar, a morte me aceitará.

    Melkart, o visitante, assente com a cabeça. Seu sorriso impenetrável continua a incomodar Silveira.
    Silveira apanha um casaco e sai pela porta da pequena cabana.


    Quatro horas se passam. Melkart observa impassível pela janela da cabana de Silveira. Em sua face, nenhum sentimento é demonstrado, e suas intenções são insondáveis.
    Finalmente a porta da cabana se abre e um amaldiçoado Silveira entra e se joga sentado no chão. Seus olhos refletem o mais puro horror.

- E-está feito... – murmura Silveira.
- Sim, eu senti o impacto de seus atos – responde Melkart.
- Sentiu? Então sabe o que eu fiz? – Silveira não consegue tirar os olhos do chão. É impossível encarar Melkart.
- Sim. Achei que foi um grande esforço de sua parte.
- GRANDE ESFORÇO??? – Silveira levanta-se e avança agarrando Melkart pelo colarinho - É TUDO O QUE TEM PARA ME DIZER?
- Ora, - Melkart encara Silveira nos olhos – deseja que eu lhe dê parabéns por ter chacinado toda a população da vila mais próxima? Parabéns por ter matado homens, mulheres e crianças, sem discriminação, sem hesitação? Você matou quase duzentas pessoas, apenas lhes tocando... acha que é um grande feito?
- Agora tenho certeza... Você É o demônio! Meu Deus... vejo o rosto de cada um daqueles que toquei. E-eu matei... crianças inocentes! Bebês até!
- Cada um tem seu demônio, Silveira. Talvez eu seja o seu. Mas sou um homem de palavra.
- Vai me dar a morte?
- Sim, claro.
- ENTÃO FAÇA LOGO! EU QUERO MORRER AGORA!
- Receba esta marca – dizendo isto, Melkart toca no braço direito de Silveira. O imortal sente a dor de uma queimadura e quando o visitante retira a mão, Silveira percebe uma tatuagem em forma de serpente no seu braço.
- Minha pele vai regenar. Essa marca vai sumir. – diz o imortal.
- Não. Ela está gravada na sua alma. Você agora terá o prêmio que tanto pediu. Mas deve me encontrar num lugar apropriado.
- Você prometeu me matar! Eu exijo...
- Claro. Mas isso não pode ser feito em qualquer lugar. Eu lhe mandarei instruções sobre como chegar em um local de poder, onde poderei libertar você do peso da imortalidade. Acalme-se, homem imortal... você terá seu descanso.
- SIM! SIM! É o que eu quero!
- Aguarde minhas instruções. Em breve nos reencontraremos.

    Um vento frio escancara a porta da cabana e Silveira volta-se para fechá-la. Ao olhar de volta, o misterioso visitante Melkart desaparecera.

- Era o demônio. Eu tenho certeza. Pois que seja... Pois que eu vá para o inferno. Chega desta existência! Chega deste mundo! Eu irei ao seu encontro Melkart, e por bem ou por mal, você me libertará desta existência.

FIM

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